terça-feira, junho 27, 2006

"Quem não vê bem uma palavra, não pode ver bem uma alma".


Em visita ao Museu da Língua Portuguesa juntamente com os meus alunos da ONG Idepac, tive o prazer de realizar uma viagem num mundo de sons e imagens tendo como palco a nossa maravilhosa Língua Portuguesa.
Amante das letras que sou, não pude deixar de notar a brilhante definição de Fernando Pessoa em uma das placas que fica no chão, e que são iluminadas por baixo localizada na "Árvore das Palavras".
Posso estar enganado, mas acredito que o verbo usado pelo escritor nesta frase ("vê") abrange uma série de sentidos que não apenas o da visão, como literalmente escrito. Podemos imaginar a palavra dita por uma pessoa em um "sem número" de tons, humores e sensações e que pode igualmente ser interpretada de diversas outras maneiras.
A palavra por nós lida (visão) ou ouvida da boca de outra pessoa (audição) nos remete a uma sensação, um sentimento, à alma propriamente dita.
Palavras têm o poder de transmitir carinho, amor ou ódio e indiferença. Daí a lição do nosso mestre em comento: "quem não vê bem uma palavra não pode ver bem uma alma". Com segurança podemos traçar um paralelo com outro Mestre, este mais sábio, e o seu ensinamento: "Conhece-se uma árvore pelos seus frutos". Daí perceberemos bem uma alma (ou a veremos como diz Pessoa), a partir do momento que passamos a ver bem uma palavra (lida, escrita, dita).
No ensaio, a palavra seria o fruto proveniente da alma que seria a árvore; ou como me disse uma garota pra lá de adorável há algumas semanas: "as pessoas vêem aquilo que se seu coração está cheio", ou ainda em dito popular "da boca sai aquilo que o coração se enche".
Assim, passemos a avaliar melhor uma palavra; tanto aquelas que saem de nossas bocas ou de nossas mãos, a fim de que possamos nos tornar almas melhores, como aquelas que nos são dirigidas, faladas ou escritas, para que se possa conhecer um pouco melhor as almas que nos cercam, como sugere Pessoa.

Ivanildo Monteiro
27/06/2006.

sábado, junho 17, 2006

Tipos de mulheres

Há alguns dias atrás, conversava com uma amiga que, assim como eu, filosofa sobre as intrincadas relações humanas.
Ela me dizia que em conversa com um outro amigo seu, este lhe dizia que existem três tipos de mulheres: (i) para conversar, (ii) para mostrar aos amigos e, finalmente, (iii) aquelas que são para casar.
Achei muito interessante a definição que rola à boca pequena em nosso universo masculino. Acho até que inconscientemente muitos homens pensam dessa maneira. Mas nunca havia me deparado com a definição; àquelas poucas palavras que traduzem um pensamento abrangente.
E refletindo sobre o tal conceito que permeia a mente de inúmeros homens, sem entrar no mérito de ser válido ou não tal pensamento, mesmo porque as mulheres também devem ter inúmeras definições sobre os tipos de homens, reflito e chego a uma conclusão:
Parece-me que foi o brilhante e sábio Rubem Alves que em uma de suas obras disse que o ideal é procurarmos para casar uma pessoa com quem gostamos de conversar, até porque, depois de algum tempo a única coisa que restará será a conversa. O sexo com o tempo se vai. E se a conversa não é boa, como manter uma relação por anos a fio?
Aqui temos então o uso de duas das três possíveis definições de mulher, segundo o conceito que habita o imaginário masculino. O mestre Rubem não liga para aquele tipo “para mostrar aos amigos”. Na verdade, em entrelinhas, deixa claro que isso não é importante.
Por outro lado, nas conversas de botequim regado à cerveja, em nossos inúmeros happy hours cotidianos, percebe-se que o importante aos olhos masculinos é mesmo esse tipo de mulher. Porém, satisfeito o instinto masculino, a vaidade e o orgulho a ser demonstrado perante a sociedade (e os amigos), o que restará entre as quatro paredes do casal?
A minha avó tinha um ditado que até os dias de hoje é repetido pela minha amada mãe: “só sabe que come o sal junto”. Reflito e não contesto. O que se apresenta perante as pessoas pode não ser exatamente o que temos no recanto do lar, na intimidade do casal; e que as inúmeras dificuldades impostas pela vida, como contas a pagar, frustrações, angústias, acabem por consumir o viço, o amor mesmo com o passar dos anos. Pode ser que tenhamos em casa um exemplo de beleza grega com quem desfilamos, por vezes, perante a nossa superficial e exigente sociedade, porém, quando a sós, nenhuma palavra.
Pergunta-me o atento leitor: Como saber então? Qual das três é o modelo ideal de mulher?
Deveríamos segmentar a compreensão por fases da vida? Durante a juventude procurar a bela, na fase adulta estar com aquela com quem gostamos de conversar e na preparação para a terceira fase da vida estar com aquela que seja “para casar”?
Aliás, o que é o tipo de mulher “para casar”? Muito subjetivo, não acham? Alguns podem gostar das recatadas, quietas, que falam mansinho, outros podem gostar das expansivas, falantes, explosivas, um terceiro grupo talvez queira um pouco de equilíbrio entre esses extremos, outros ainda, podem querer somente aquelas que saibam lavar, passar e cozinhar, pasmem!
Tarefa difícil.
Bem, fico com as três! Ou melhor, fico com aquela que reunir as três características. Pois, conhecendo-me um pouco, não duraria uma relação com uma mulher com quem a conversa não seja boa, com que não exista assunto naqueles dias em que nós não temos assunto, mas a simples presença daquele ser nos inspira a falar, falar e falar e ouvir, ouvir, ouvir, eternos...
Quanto àquela que é para mostrar aos amigos, penso que, se a amo, ela deverá estar ao meu lado em qualquer circunstância. Sim, ela será a mulher que desfilará ao meu lado, independentemente de preencher requisitos estereotipados pela cruel sociedade. Aos meus olhos ela será o meu par. E se assim, eu estiver satisfeito, não me importarão os olhares alheios.
Por fim, se encontrei aquela com quem adoro conversar e que desfila seu semblante comigo diante da sociedade (e meus amigos), além de outras inúmeras “pequenas coisas” misteriosas que existem entre um casal e que neste texto não estão contempladas, por que não seria aquela a mulher para casar? Claro que sim! Direi sim perante o Deus, meus amigos e minha sociedade. O resto são apenas rótulos e definições, talvez jocosas e que não importam à grande maravilha que é estar com quem se gosta.

Ivanildo Monteiro
17/06/06.

terça-feira, junho 13, 2006

Expectativa

Quem nunca sentiu aquela sensação de que as horas não passam? De que o dia “D” ou a hora “H” demoram a chegar?
Pois é, a bendita expectativa!
Como conter, controlar ou mesmo disfarçar aquela ansiedade pela realização de algo que esperamos?
Parece que o intervalo entre a possibilidade de realização e a efetiva concretização do esperado torna-se interminável, infinito.
A espera transforma-se no principal objetivo, no pensamento dominante que nos vem à mente por mais que nos esforcemos por não pensar no assunto.
Todos sabem que é altamente recomendável o controle da expectativa. Falam dos distúrbios que causa em nosso organismo complexo, descargas elétricas contínuas e aceleradas colocando-nos em agitação descontrolada, descompassada; sem saber o que fazer... Porém, como fazê-lo? Com quem se aprende? Onde é o curso? Vou me matricular já!
A expectativa... às vezes tão doce, outras tão amarga.
A espera pelo resultado daquela prova definitiva, a resposta da proposta de emprego, um sinal favorável da pessoa que abala nosso equilíbrio com a sua simples presença...
Certo! Podem me crucificar. Eu assumo: faço parte do grupo dos ansiosos. Sou adepto do movimento: “vamos logo”, “diga o resultado”.
Claro que desejo ser melhor, hoje apenas não consigo fazer isso; e torno indisfarçável o desejo de que “aquilo” aconteça logo.
Já percebeu como chamamos sempre de “aquilo” o nosso desejo que gostaríamos que permanecesse oculto até que fosse realizado?
Bem, sigo adiante; com a minha expectativa estampada no rosto, nas minhas palavras, no meu jeito. Meu organismo já quase pede clemência para que cessem as inúmeras e sucessivas descargas elétricas... fazer o quê? Culpa talvez da transparência...

Ivanildo Monteiro.
09/06/06.

domingo, junho 11, 2006

Surfista Prateado (Silver Surfer)

Eu e a minha prancha
A distância, a velocidade, nada disso importa...
Não tenho um destino,
Vou para onde os ventos do acaso me levarem...
Eu conheci a precipitada exaltação da vitória
E a dor torturante da derrota,
Mas jamais poderei deixar de buscar um oásis de sanidade nesse deserto de loucuras que os homens chamam de terra...
Pois o pior de todos os destinos,
Nestes incontáveis mundos e infinitas estrelas,
É ser eternamente sozinho...

(autoria desconhecida)

A mulher selvagem

(Absolutamente fantástica a definição de mulher selvagem de Ricardo Kelmer).

A mulher selvagem em quase tudo é uma mulher comum: pega metrô lotado, aproveita as promoções, bota o lixo para fora e tem dia que desiste de sair porque se acha um trapo. Porém em tudo que faz exala um frescor de liberdade. E também dá arrepios: você tem a impressão de que viu uma loba na espreita. Você se assusta, olha de novo... e quem está ali é a mulher doce e simpática, ajeitando dengosa o cabelo, quase uma menininha. Mas por um segundo você viu a loba, viu sim. É ela, a mulher selvagem.
A sociedade tenta, mas não pode domesticá-la, ela se esquiva das regras.
Quando você pensa que capturou, escapole feito água entre os dedos. Quando pensa que finalmente a conhece, ela surpreende outra vez. Tem a alma livre e só se submete quando quer. Por isso escolhe seus parceiros entre os que cultuam a liberdade. E como os reconhece? Como toda loba, pelo cheiro, por isso é bom não abusar de perfumes. Seu movimento tem graça, o olhar destila uma sensualidade natural - mas, cuidado, não vá passando a mão. Ela é um bicho, não esqueça. Gosta de afago, mas também arranha.
Repare que há sempre uma mecha teimosa de cabelo: é o espírito selvagem que sopra em sua alma a refrescante sensação de estar unida a Terra. É daí que vem sua beleza e força. E sua sabedoria instintiva. Sim, ela é sábia, pois está em harmonia com os ritmos da Natureza. Por isso conhece a si mesma, sabe dos seus ciclos de crescimento e não sabota a própria felicidade. Como todo bicho ela respeita seu corpo, mas nem sempre resiste às guloseimas.
Riponga do mato, Gabriela brejeira? Não necessariamente, a maioria vive na cidade. E há dias paquera aquele pretinho básico da vitrine. E adora dançar em noite de lua. Ah, então é uma bruxa... Talvez, ela não liga para rótulos.
Sabe que a imensidão do ser não cabe nas definições.
Mulheres gostam de fazer mistério. Ela não, ela é o mistério. Por uma razão
simples: a mulher selvagem sabe que a vida é uma coisa assombrosa e perfeita e vive o mais sagrado dos rituais. Ela sente as estações e se movimenta de acordo com os ventos, rindo da chuva e chorando com os rios que morrem.
Coleciona pedrinhas, fala com plantas e de uma hora para outra quer ficar só, não insista.
Não, ela não é uma esotérica deslumbrada, mas vive se deslumbrando: com as heroínas dos filmes, aquela livraria nova, o CD do fulano... Ela se apaixona, sonha acordada e tem insônia por amor. As injustiças do mundo a angustiam, mas ela respira fundo e renova sua fé na humanidade. Luta todos os dias por seus sonhos, adormece em meio a perguntas sem respostas e desperta com o sussurro das manhãs em seu ouvido, mais um dia perfeito para celebrar o imenso mistério de estar vivo.
Ela equilibra em si cultura e natureza, movendo-se bela e poética entre os dois extremos da humana condição. Ela é rara, sim, mas não é uma aberração, um desvio evolutivo. Pelo contrário: ela é a mais arquetípica e genuína expressão da feminilidade, a eterna celebração do sagrado feminino. Ela está aí nas ruas, todos os dias.
Esta crônica é uma homenagem a ela, a mulher selvagem, o tipo que fascina os homens que não têm medo do feminino. Eles ficam um pouco nervosos, é verdade, quando de repente se vêem frente a frente com um espécime desses.
Por isso é que às vezes sobem correndo na primeira árvore. Mas é normal.
Depois eles descem, se aproximam desconfiados, trocam os cheiros e aí...
Bem, aí a Natureza sabe o que faz.
Ricardo Kelmer.

Tênis x Frescobol

Tive o prazer de conhecer através de uma pessoa maravilhosa um pouquinho do fantástico mundo de belas crônicas, histórias, textos enfim, de Rubem Alves, e gostaria de deixar aqui um que gostei muito e que divido agora com vocês...

"Depois de muito meditar sobre o assunto concluí que os casamentos são de dois tipos: há os casamentos do tipo tênis e há os casamentos do tipo frescobol. Os casamentos do tipo tênis são uma fonte de raiva e ressentimentos e terminam sempre mal. Os casamentos do tipo frescobol são uma fonte de alegria e têm a chance de ter vida longa. Explico-me. Para começar, uma afirmação de Nietzsche, com a qual concordo inteiramente. Dizia ele: ‘Ao pensar sobre a possibilidade do casamento cada um deveria se fazer a seguinte pergunta: ‘Você crê que seria capaz de conversar com prazer com esta pessoa até a sua velhice?\' Tudo o mais no casamento é transitório, mas as relações que desafiam o tempo são aquelas construídas sobre a arte de conversar.’ Xerazade sabia disso. Sabia que os casamentos baseados nos prazeres da cama são sempre decapitados pela manhã, terminam em separação, pois os prazeres do sexo se esgotam rapidamente, terminam na morte, como no filme O império dos sentidos. Por isso, quando o sexo já estava morto na cama, e o amor não mais se podia dizer através dele, ela o ressuscitava pela magia da palavra: começava uma longa conversa, conversa sem fim, que deveria durar mil e uma noites. O sultão se calava e escutava as suas palavras como se fossem música. A música dos sons ou da palavra - é a sexualidade sob a forma da eternidade: é o amor que ressuscita sempre, depois de morrer. Há os carinhos que se fazem com o corpo e há os carinhos que se fazem com as palavras. E contrariamente ao que pensam os amantes inexperientes, fazer carinho com as palavras não é ficar repetindo o tempo todo: ‘Eu te amo, eu te amo...’ Barthes advertia: ‘Passada a primeira confissão, ‘eu te amo\' não quer dizer mais nada.’ É na conversa que o nosso verdadeiro corpo se mostra, não em sua nudez anatômica, mas em sua nudez poética. Recordo a sabedoria de Adélia Prado: ‘Erótica é a alma.’

O tênis é um jogo feroz. O seu objetivo é derrotar o adversário. E a sua derrota se revela no seu erro: o outro foi incapaz de devolver a bola. Joga-se tênis para fazer o outro errar. O bom jogador é aquele que tem a exata noção do ponto fraco do seu adversário, e é justamente para aí que ele vai dirigir a sua cortada - palavra muito sugestiva, que indica o seu objetivo sádico, que é o de cortar, interromper, derrotar. O prazer do tênis se encontra, portanto, justamente no momento em que o jogo não pode mais continuar porque o adversário foi colocado fora de jogo. Termina sempre com a alegria de um e a tristeza de outro.
O frescobol se parece muito com o tênis: dois jogadores, duas raquetes e uma bola. Só que, para o jogo ser bom, é preciso que nenhum dos dois perca. Se a bola veio meio torta, a gente sabe que não foi de propósito e faz o maior esforço do mundo para devolvê-la gostosa, no lugar certo, para que o outro possa pegá-la. Não existe adversário porque não há ninguém a ser derrotado. Aqui ou os dois ganham ou ninguém ganha. E ninguém fica feliz quando o outro erra - pois o que se deseja é que ninguém erre. O erro de um, no frescobol, é como ejaculação precoce: um acidente lamentável que não deveria ter acontecido, pois o gostoso mesmo é aquele ir e vir, ir e vir, ir e vir... E o que errou pede desculpas; e o que provocou o erro se sente culpado. Mas não tem importância: começa-se de novo este delicioso jogo em que ninguém marca pontos...
A bola: são as nossas fantasias, irrealidades, sonhos sob a forma de palavras. Conversar é ficar batendo sonho pra lá, sonho pra cá...
Mas há casais que jogam com os sonhos como se jogassem tênis. Ficam à espera do momento certo para a cortada. Camus anotava no seu diário pequenos fragmentos para os livros que pretendia escrever. Um deles, que se encontra nos Primeiros cadernos, é sobre este jogo de tênis:
‘Cena: o marido, a mulher, a galeria. O primeiro tem valor e gosta de brilhar. A segunda guarda silêncio, mas, com pequenas frases secas, destrói todos os propósitos do caro esposo. Desta forma marca constantemente a sua superioridade. O outro domina-se, mas sofre uma humilhação e é assim que nasce o ódio. Exemplo: com um sorriso: ‘Não se faça mais estúpido do que é, meu amigo\'. A galeria torce e sorri pouco à vontade. Ele cora, aproxima-se dela, beija-lhe a mão suspirando: ‘Tens razão, minha querida\'. A situação está salva e o ódio vai aumentando.’
Tênis é assim: recebe-se o sonho do outro para destruí-lo, arrebentá-lo, como bolha de sabão... O que se busca é ter razão e o que se ganha é o distanciamento. Aqui, quem ganha sempre perde.
Já no frescobol é diferente: o sonho do outro é um brinquedo que deve ser preservado, pois se sabe que, se é sonho, é coisa delicada, do coração. O bom ouvinte é aquele que, ao falar, abre espaços para que as bolhas de sabão do outro voem livres. Bola vai, bola vem - cresce o amor... Ninguém ganha para que os dois ganhem. E se deseja então que o outro viva sempre, eternamente, para que o jogo nunca tenha fim... ". (O retorno e terno, p. 51.)

quarta-feira, junho 07, 2006

Sobre o blog e o texto de inaguração:

Quem me conhece sabe que aprecio muito as coisas simples da vida. Chamo de "coisas simples" aquelas situações que podem nos parecem rotineiras: um abraço sincero de um amigo(a) que gostamos muito e que há tempos não vemos; provocar um sorriso nas pessoas que nos cercam; as sensações e emoções transmitidas por boas músicas, textos, livros; o prazer de uma boa conversa sobre os assuntos mais variados e inusitados; a contemplação e a alegria em conhecer novos lugares, pessoas, culturas.

Pois bem, coisas simples, simples assim. Daí a inspiração para o nome deste blog e o texto que o inaugura que me foi passado por uma amiga quando conversávamos sobre o tema simplicidade e falando em simplicidade, ele é simplesmente perfeito! (trocadilho não proposital. rs). Triste na verdade, porém a tristeza é a companheira da inspiração e o intervalo entre o fracasso e o levante para o sucesso. Adoraria tê-lo escrito...

Convites Supérfluos (por: Dinno Buzzati)
Gostaria que você viesse à minha casa numa noite de inverno e juntos, de rostos colados à vidraça, olhos fitos na solidão das ruas escuras e geladas, recordássemos os invernos das fábulas, onde se vive junto sem saber. Pelos mesmos caminhos encantados passamos, de fato, eu e você na verdade; com passos tímidos, juntos atravessamos as florestas cheias de lobo, e os próprios gênios nos espiavam dos tufos de musgo suspensos das torres, entre um esvoaçar de corvos. Juntos, sem sabê-lo, talvez de lá olhássemos ambos para a vida misteriosa que nos aguardava. Depois palpitaram em nós, pela primeira vez, doidos e ternos desejos. "Você se lembra?", diremos um ao outro, abraçando-nos docemente no aposento tépido, e você sorrirá para mim, confiante, enquanto lá fora produzirão um tétrico som as folhas sacudidas pelo vento. Mas você _ lembro-me agora_ não conhece as fábulas antigas do rei sem nome, dos papões e dos jardins enfeitiçados. Nunca passou, extasiada, sob as árvores mágicas que falam com voz humana, nem bateu à porta do castelo deserto, nem caminhou pela noite, rumo ao fogo distante, nem adormeceu debaixo das estrelas do Oriente, ao embalo da canoa sagrada. Atrás das vidraças, na noite de inverno, provavelmente permaneceremos mudos, eu perdido nas fábulas mortas, você em outros cuidados que desconheço. Eu lhe perguntarei: "Lembra-se?", mas você não se lembrará.
Gostaria de passear com você num dia de primavera, de céu cor cinza e ainda alguma velha folha do ano anterior arrastada pelo vento nas ruas dos bairros da periferia; e que fosse domingo. Nesse bairros, surgem amiúde pensamentos melancólicos e grandiosos, e em certas horas anda a poesia a vagar, unindo os corações que se querem bem. Nascem, além disso, esperanças que ninguém sabe explicar, amante dos horizontes sem fim atrás das casas, dos trens em fuga, das nuvens do setentrião. Ali nos daremos singelamente as mãos e andaremos a passo ligeiro, dizendo coisas insensatas, tolas e amáveis. Até que se acendam as luzes da rua e dos prédios esquálidos surjam as histórias sinistras da cidade, as aventuras, os romances almejados. E então nos calaremos, sempre de mãos dadas, pois as almas se falam sem palavras. Mas você _agora me lembro_ nunca disse coisas insensatas, tolas e amáveis. Não pode, portanto, amar esses domingos de que falo, nem sua alma sabe falar à minha em silêncio, nem reconhecer na hora certa o encantamento da cidade ou as esperanças que descem do setentrião. Você prefere as luzes, a multidão, os homens que a olham, os caminhos onde dizem que se pode encontrar a fortuna. Você é diferente de mim e, se viesse passear algum dia, iria queixar-se de cansaço; só isso e nada mais.
Eu gostaria também de passear com você, no verão, por um vale solitário, a rir continuamente das coisas mais simples e a explorar os segredos dos bosques, das estradas brancas, de certas casas abandonadas. De parar na ponte de madeira contemplando a água que passa, de escutar nos postes telegráficos essa longa história sem fim que vem dos confins do mundo e quem sabe onde ora andará. E de colher flores dos prados e ali, estendidos na relva, no silêncio ensolarado, contemplar os abismos do céu e as alvas nuvenzinhas que passam e os cumes das montanhas. Você diria: "Que lindo!". Nada mais diria porque estaríamos felizes, teríamos perdido o peso dos anos, nossas almas rejuvenescidas como se acabassem de nascer.
Mas você _ agora que penso nisso_ olharia à sua volta sem compreender, temo, e se deteria a examinar preocupada uma meia e me pediria um outro cigarro, impaciente por voltar. E não diria: "Que lindo!", mas outras coisas banais que a mim não me importam. Talvez porque você seja feita assim. E não seríamos felizes sequer por um instante.
Eu gostaria, outrossim, deixe-me dizer, de atravessar com você, de braços dados, as grandes ruas da cidade num entardecer de novembro, quando o céu é puro cristal. Quando os fantasmas da vida correm por cima das cúpulas e roçam as pessoas escuras, no fundo da fossa das ruas, já repletas de inquietudes. Quando recordações da idade bem-aventurada e novos presságios passam sobre a terra, deixando atrás de si uma espécie de música. Com a cândida soberba das crianças olharemos os rostos dos outros, milhares e milhares, que passam por nós. Emitiremos sem saber uma luz de alegria e todos serão obrigados a olhar-nos, não por inveja ou malquerença, mas antes sorrindo de leve, bondosamente, por influxo da noite que cura as fraquezas do homem. Você, todavia _compreendo-o bem, em vez de contemplar o céu de cristal e as colunas aéreas iluminadas pelo sol poente, preferiria deter-se a olhar as vitrines, as jóias, as riquezas, as sedas, essas coisas mesquinhas. E não perceberá por isso os fantasmas, os pressentimentos que passam, nem se sentirá, como eu, chamada a um destino orgulhoso. Nem ouvirá aquela espécie de música, nem compreenderá por que as pessoas nos contemplam com olhos bondosos. Pensará no seu pobre amanhã e inutilmente, acima de você, as estátuas de ouro sobre os coruchéus erguerão as espadas para os últimos raios. E eu estarei só.
É inútil. Talvez tudo isto não passe de bobagem e você seja melhor do que eu por não presumir tanto da vida. Talvez tenha razão e eu seja tolo por tentar. Mas ao menos, isso sim, ao menos, eu gostaria de revê-la. Aconteça o que acontecer, estaremos juntos de algum modo, e encontraremos a alegria. Não importa se de dia ou de noite, verão ou outono, numa cidade desconhecida, numa casa desadornada, numa pousada esquálida. Bastará eu ter você perto de mim. Não ficarei ali a escutar _ prometo_ os estalidos do teto, nem olharei as nuvens, nem darei atenção às músicas ou ao vento. Renunciarei a essas coisas inúteis, que, no entanto, amo. Terei paciência se você não entender o que lhe digo, se falar-me de fatos para mim estranhos, se se queixar dos vestidos velhos e da falta de dinheiro. Ali não estarão a suposta poesia, as esperanças comuns, as melancolias tão amigas do amor. Mas eu a terei perto de mim. E conseguiremos, você verá, ser bastante felizes, com muita simplicidade, homem com mulher apenas, como costuma acontecer em toda parte do mundo.
Mas você _ agora penso nisso - está longe demais, a centenas e centenas de quilômetros difíceis de transpor. Vive uma vida que ignoro, e outros homens estão a seu lado, aos quais provavelmente você sorri, como a mim em tempos passados. E bastou-lhe pouco tempo para esquecer-me. Provavelmente você não consegue mais lembrar-se do meu nome. Agora estou fora de você, confundido às sombras inumeráveis. E, no entanto, não sei pensar senão em você, e gosto de lhe dizer estas coisas.
Dino Buzzati.